O dilema de Gabriele

Travesti, 35 anos, moradora de rua. Há mais de 20 anos Gabriele vive na cidade de Fernandes Pinheiro. Sobrevive do pouco que lhe oferecem e afirma que o preconceito é muito grande, muitos só lhe oferecem emprego se ela tirar o vestido e voltar a ser homem

Em Fernandes Pinheiro, todos a conhecem como Gabriele. Ela não tem família, não tem casa, dorme nos fundos da antiga estação ferroviária do município, onde hoje funciona o Programa de Voluntariado Paranaense (Provopar) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).

Ana Paula Schreider/Hoje Centro Sul
Gabriele nem sempre foi Gabriele, o destino fez com que ela nascesse em corpo de homem e fosse batizado Ivanildo Rodrigues, mas ela se sente e é mulher. Gabriele usa vestido, pinta as unhas de vermelho e não se intimida.

A vida lhe tirou tudo, na verdade, nunca lhe deu muita coisa. Desde que se conhece por gente, Gabriele vive da ajuda que lhe oferecem. Aos 14 anos veio parar em Fernandes Pinheiro, pois a família tinha preconceito quanto a sua opção sexual. Foi casada com três homens e por último com uma mulher, com a qual teve um filho.

Após a separação, Gabriele morou de favor em uma chácara, onde o dono cedeu a casa para que ela ficasse. A moradia durou um ano e meio até que, por medo, Gabriele abandonou o lugar. “Era uma casa longe de tudo, sem luz, me mandaram uma carta me ameaçando de morte, entraram na casa, mataram meu gato e reviraram tudo, não tinha condições de ficar lá”, conta Gabriele.
Faz cinco meses que ela está na rua. Segundo a mesma, nunca ficou tanto tempo sem um teto. Durante esses meses, ela já morou no cemitério, na rodoviária e onde lhe davam um cantinho. “Hoje, graças à ajuda das meninas do Provopar eu estou aqui, mas já fui expulsa de todos os lugares em que passei”, conta.

Gabriele afirma que não está nessa situação por querer. “Eu tenho vergonha da minha condição, tudo que eu queria era um emprego, meu sonho é ser cabeleireira, mas eu já fui de tudo: trabalhei em oficina, ajudante de pedreiro, mas ninguém aceita minha aparência e por isso não consigo trabalhar”.
A “casa” improvisada faz jus à organização feminina, o que ganha é bem cuidado. O último temporal levou o pouco que ela tinha, mas aos poucos recuperou as roupas. Com a ajuda da ex-esposa conseguiu uma cama, o colchão foi adquirido através da Secretaria de Bem Estar Social e um fogão, doado por uma vizinha.

No pequeno armário que encontrou no lixo, ela guarda as poucas peças femininas que possui e os remédios controlados que toma. Por tomar remédios fortes, Gabriele passou por um dos momentos mais frustrantes de sua vida no começo de maio. “Quando eu tomo os remédios eu apago, só acordei por causa da dor que era insuportável”. Gabriele foi estuprada, não sabe por quem, só sabe que o homem estava completamente alcoolizado. Três dias sem conseguir sentar, foi o que o ato lhe causou. Sem contar a humilhação.

Vinte anos nesta situação, e assim ela vive do pouco que lhe oferecem. Gabriele já foi retirada da cidade, mandada para junto dos que considera familiares na cidade de Castro, mas voltou porque a família não aceita sua opção sexual. “Eu voltei, porque aqui é a cidade que eu adotei como lar, eu não posso ir para cidades maiores, porque se aqui já tem violência, imagina lá fora”.
Gabriele afirma que o preconceito é muito grande. “Eles me oferecem ajuda, mas querem mudar meu jeito de ser, dizem que eu tenho que mudar meu vestuário, dizem que se eu me vestir de homem eles me ajudam. A única pessoa diferente na cidade sou eu, a única que não consegue as coisas sou eu”.

Assistência Social
Em nota, a Secretaria de Assistência Social de Fernandes Pinheiro informou que Gabriele é acompanhada e orientada pelas Políticas Públicas do Município.
A Secretaria de Bem Estar Social até tentou lhe arranjar um emprego, mas Gabriele não consegue trabalhar por conta dos remédios fortes que toma. “Eu precisava acordar às 5h pra ir para esse trabalho, os remédios me dopam e eu não consigo nem levantar”, conta.

Ainda segundo a nota, a Secretaria auxilia Gabriele com benefícios eventuais, como cestas básicas, cobertores, roupas, colchão, tendo tudo registrado com datas de entrega. Gabriele reconhece a ajuda que a Secretaria lhe oferece, mas afirma que tudo é provisório, o que não muda a situação da moradora de rua. “Eles me dão cesta básica, mas eu não tenho onde cozinhar, não tenho nem dinheiro para comprar um botijão de gás, quando eles me dão roupa, colchão, com a primeira chuva estraga tudo. Além de que, se eu deixo meu canto sozinho, às vezes volto e está tudo revirado”, conta.
O que Gabriele quer é uma pequena casa onde possa acomodar seus pertences. “Não precisa ter nem luz, uma peça só já era suficiente, um lugar onde eu pudesse tomar banho, se eu tivesse onde tomar banho já podia me ajeitar e arrumar um emprego melhor”.

Conforme informações do setor de Habitação do Município de Fernandes Pinheiro, Gabriele está cadastrada nos projetos habitacionais disponibilizados pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar), onde há critérios de seleção das famílias para futuras moradias. Até o presente momento há somente o projeto, não tendo data prevista para início das obras. O processo é lento, pois depende de recursos estaduais e federais.

Mas, Gabriele afirma que algumas famílias já conseguiram casas e ela não. A Secretaria informou que existem alguns critérios para ser beneficiário, por exemplo, famílias com filhos pequenos, idosos, têm preferência.

Gabriele é uma usuária do Sistema Único de Assistência Social, por isso a Secretaria a considera como uma pessoa em vulnerabilidade social, passando por dificuldades de organização estrutural e emocional.

Sobre o encaminhamento de Gabriele até Castro, a nota esclarece que “enquanto estratégia de resgate familiar para fortalecimento de vínculos de Gabriele com os familiares foi realizado contato com a família, visto que esta se demonstrou interessada em fortalecer os vínculos com Gabriele que há alguns anos não mantinham contato. Diante disso, Gabriele foi levada até a família, que estava toda a sua espera e feliz com o seu retorno. Mesmo com toda a reaproximação de Gabriele com sua mãe e irmãos, ela permaneceu apenas por uma semana, retornando para o Município de Fernandes Pinheiro, alegando querer viver aqui e não retornar para Castro”.

Gabriele afirma que as pessoas que dizem ser seus familiares em Castro, não são sua família, eles apenas a registraram para que ela pudesse ter seus documentos. “Eu saí daquela casa com 10 anos de idade e como poderia voltar para lá?”, contesta. Gabriele ainda afirma que sua ida para a cidade de Castro não foi de total acordo com a Secretaria de Bem Estar Social. “Eu nem sabia para onde estava indo”, alega.

A história de Gabriele passa por muitas versões e não há como provar quais são verdadeiras. O comerciante, Matheus Chagas, afirma que ela não incomoda, mas que de vez em quando tem alguns distúrbios. “A gente observa a questão mental mesmo, porque às vezes ela sai de madrugada gritando nas ruas, tirando isso ela não incomoda, mas muito pouca gente ajuda ela, mas é porque ela não vem pedir também”.

Maria da Luz Cardoso, reside em Fernandes Pinheiro, segundo Gabriele, é uma das poucas pessoas que lhe oferecem ajuda no município. “Às vezes ela toma banho aqui, a gente dá comida pra ela, já arranjei um colchão, mas quando choveu molhou tudo, a gente tem dó, mas não podemos ajudar muito, ela precisa mesmo é de uma casa, mas ela não pode trabalhar dopada de remédios”, destaca.
Maria diz que o lugar onde Gabriele está é muito perigoso. “Quando ela vai embora daqui eu fico com muito dó, sabendo que ela vai dormir em um lugar que nem tem parede”, conclui a dona de casa, moradora de Fernandes Pinheiro.

Ana Paula Schreider/Hoje Centro Sul