A carinha da moça já dizia que alguma coisa não estava bem. E não estava mesmo. Nada bem! O maldito dentinho, lá de trás, achou de doer. Mais, achou de doer muito. Mais, achou de doer demais. Mais, o maldito do dentinho lá de trás inventou que podia simplesmente latejar de dor. A mãe da criatura nem quis saber. Mandou-a trabalhar assim mesmo e, no mando, recomendou que aguentasse firme, sem reclamar, porque se a patroa soubesse que o dentinho lá de trás estava doendo, acharia que era mentira e que ela, a individuazinha, estava só enrolando. Assim ela foi trabalhar. Só de vez em quando uma lágrima a maquiava o canto do olho, logo limpada para não dar o que falar. E foi numa dessas que, sem perceber a aproximação da megera, a miseravinha esboçou um choro para acompanhar a lágrima de dor. Antes de perguntar se estava acontecendo alguma coisa, uma cara de quem sabe que está acontecendo alguma coisa, mas que, por essa coisa representar uma ameaça à normalidade das tarefas que precisam ser cumpridas, a cara. Na resposta engasgada o choro desabado e a imediata dispensa do trabalho, recomendando que fosse tratar imediatamente do dente para não prejudicar o serviço “principalmente nessa época em que as coisas precisam estar muito organizadas”. Feliz Natal!
Com um sentimento de culpa e medo acompanhando o latejar da dor, a pobrezinha foi atrás do recurso. No caminho o pensamento de que achava que não fizera, até aquele momento, nada de tão extraordinário bom que lhe fizesse merecedora de uma vida como a de tantas outras garotas da sua idade que não precisam passar pelo que ela passava. E no pensamento de consolação um estalo na consciência de que também não fizera nada de tão extraordinariamente errado que não lhe fizesse merecedora de uma vida pelo menos melhor do que a que estava levando. E no intervalo das descobertas o latejo da dor que parecia aumentar.
Finalmente o atendimento. Do outro lado do balcão uma mocinha não tão mais velha que ela e também nada tão mais nova interrompeu o lixamento das unhas das mãos:
-Você quer alguma coisa?
Ela pensou: “não, não quero nada, vim aqui passear. Estava na minha casa um tanto despreocupada com o mundo e com tudo e resolvi fazer um passeio de lazer até o posto de saúde. Sabe como é, né? Há tão poucos lugares tão bonitos, com pessoas tão felizes... então resolvi vir passear aqui”. Conteve-se.
-Eu estou com muita dor de dentes. Até tive que parar de trabalhar porque não aguentava e minha patroa me deu folga pra eu pelo menos consultar e ver se para essa dor. Eu preciso de uma consulta urgente. Não estou mais aquentando.
-Mas está doendo muito?
Ela, de novo, pensou: “não queridinha. Não está doendo nada e eu vim aqui só pra passar o tempo.” E, de novo, conteve-se.
-Nossa! Eu tenho vontade de bater a cabeça na parede pra ver se esqueço um pouco a dor de dente...
-Então converse com aquela moça e ela vê se pode fazer alguma coisa por você.
-Ela é dentista?
-Ah não! Não! Ela vai ver se arranja uma consulta pra você. Converse ali com ela.
-Oi. Eu estou com muita dor no meu dente de trás, e não consigo...
-Iiiiiiii! Nem adianta me explicar nada porque o dentista é só a semana que vem. Se você quiser pode fazer a ficha e...
-Você pode sair daí de onde você está e vir aqui um momentinho?
-Por quê?
-Não! Por favor. Saia daí e venha aqui. Eu abro a boca e você vai falar isso para o meu dente.
-Isso o quê?
-Que ele só pode doer a semana que vem, no dia da consulta.
-Você leu a plaquinha do desacato?
Ela se lembrou de uma lição.
-E você leu a constituição?
E a mocinha, miseravinha, se fez. E descobriu que maior que a dor no dentinho de trás é a humilhação do mau atendimento. E descobriu que pior que a cara da patroa e o medo da mãe é ser ignorante de si. E descobriu que há coisas inevitáveis e um monte de outras que são evitáveis. E confirmou a lição aprendida que dever do cidadão é direito do estado que caminha abraçado com o direito do cidadão que é dever do estado.
E o dentinho parou de doer quando ela foi atendida pelo doutor. E os seus olhinhos brilhavam mais no dia seguinte quando cruzaram com os olhinhos foscos da patroa que, sem saber o porquê, lembraram-lhe outros olhinhos foscos.
Robson Miguel Camargo
Publicado na edição 550, em 22 de dezembro de 2010
Com um sentimento de culpa e medo acompanhando o latejar da dor, a pobrezinha foi atrás do recurso. No caminho o pensamento de que achava que não fizera, até aquele momento, nada de tão extraordinário bom que lhe fizesse merecedora de uma vida como a de tantas outras garotas da sua idade que não precisam passar pelo que ela passava. E no pensamento de consolação um estalo na consciência de que também não fizera nada de tão extraordinariamente errado que não lhe fizesse merecedora de uma vida pelo menos melhor do que a que estava levando. E no intervalo das descobertas o latejo da dor que parecia aumentar.
Finalmente o atendimento. Do outro lado do balcão uma mocinha não tão mais velha que ela e também nada tão mais nova interrompeu o lixamento das unhas das mãos:
-Você quer alguma coisa?
Ela pensou: “não, não quero nada, vim aqui passear. Estava na minha casa um tanto despreocupada com o mundo e com tudo e resolvi fazer um passeio de lazer até o posto de saúde. Sabe como é, né? Há tão poucos lugares tão bonitos, com pessoas tão felizes... então resolvi vir passear aqui”. Conteve-se.
-Eu estou com muita dor de dentes. Até tive que parar de trabalhar porque não aguentava e minha patroa me deu folga pra eu pelo menos consultar e ver se para essa dor. Eu preciso de uma consulta urgente. Não estou mais aquentando.
-Mas está doendo muito?
Ela, de novo, pensou: “não queridinha. Não está doendo nada e eu vim aqui só pra passar o tempo.” E, de novo, conteve-se.
-Nossa! Eu tenho vontade de bater a cabeça na parede pra ver se esqueço um pouco a dor de dente...
-Então converse com aquela moça e ela vê se pode fazer alguma coisa por você.
-Ela é dentista?
-Ah não! Não! Ela vai ver se arranja uma consulta pra você. Converse ali com ela.
-Oi. Eu estou com muita dor no meu dente de trás, e não consigo...
-Iiiiiiii! Nem adianta me explicar nada porque o dentista é só a semana que vem. Se você quiser pode fazer a ficha e...
-Você pode sair daí de onde você está e vir aqui um momentinho?
-Por quê?
-Não! Por favor. Saia daí e venha aqui. Eu abro a boca e você vai falar isso para o meu dente.
-Isso o quê?
-Que ele só pode doer a semana que vem, no dia da consulta.
-Você leu a plaquinha do desacato?
Ela se lembrou de uma lição.
-E você leu a constituição?
E a mocinha, miseravinha, se fez. E descobriu que maior que a dor no dentinho de trás é a humilhação do mau atendimento. E descobriu que pior que a cara da patroa e o medo da mãe é ser ignorante de si. E descobriu que há coisas inevitáveis e um monte de outras que são evitáveis. E confirmou a lição aprendida que dever do cidadão é direito do estado que caminha abraçado com o direito do cidadão que é dever do estado.
E o dentinho parou de doer quando ela foi atendida pelo doutor. E os seus olhinhos brilhavam mais no dia seguinte quando cruzaram com os olhinhos foscos da patroa que, sem saber o porquê, lembraram-lhe outros olhinhos foscos.
Robson Miguel Camargo
Publicado na edição 550, em 22 de dezembro de 2010